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  • Foto do escritorMarcio Oliveira - Vinoticias

AMARONE DELLA VALPOLICELLA, UM ÍCONE ITALIANO FRUTO DE UM ESQUECIMENTO


O mundo do vinho é cercado de lendas, e talvez por isso mesmo fique mais saboroso a cada história contada e cada taça degustada. A região do Vêneto é a região italiana que mais produz vinhos, e onde há alguns rótulos muito conhecidos, entre os tintos Bardolinos, Valpolicellas e Amarones, sem contar o delicioso branco Soave e os espumantes Prosecco.

A região de produção do Valpolicella quer dizer literalmente Val (vale) poli (muitas) cellas (adegas), já era bem reconhecida na época do Império Romano. Viveu um período de apogeu quando Veneza se converteu na capital da República Sereníssima, um Estado no nordeste da península Itálica, que existiu do século IX ao século XVIII. É muitas vezes referida apenas como a Sereníssima e seu fim se deu em 1797, ano em que foi invadida por Napoleão Bonaparte, que com o Tratado de Campoformio a cedeu ao Império Austríaco.

Conta-se que há mais ou menos 70 anos atrás, numa vinícola em que produziam o vinho Recioto, que é um vinho de sobremesa doce, feito com uvas como Corvina, Corvinone, Rondinella, Oseleta e Negrara se deu a criação do Amarone.

As uvas são colhidas manualmente e dispostas em treliças ou mesas bem arejadas de forma que possam secar. Esse procedimento conhecido como “apassimento” faz com que as uvas percam parte da sua água, obtendo assim uma maior concentração de açúcar. A colheita acontece em setembro, as uvas ficam “passificando” até janeiro, quando são prensadas, para iniciar o processo de fermentação que resulta o Recioto. Para que o vinho tenha uma alta concentração de açúcar, a sua fermentação é interrompida antes que as leveduras transformem o açúcar em álcool.

Aconteceu que alguém se esqueceu de esvaziar um dos barris onde se fermentava uma quantidade do vinho Recioto. E quando viram tempos depois que ainda restava vinho no barril, o enólogo ao experimentar a bebida, percebeu que ela fermentou muito mais do que deveria (quanto mais tempo um vinho fermenta, mais as leveduras transformam o açúcar em álcool), transformando-o num vinho seco, sem a sua característica doce (para vinho de sobremesa), e ainda “ganhou” toque amargo, e que agradou bastante ao enólogo. O vinho ganhou o nome de “Amarone”, por conta do ligeiro “amargor” no vinho (em italiano amaro).

Daí para frente o Amarone foi ganhando lugar nas boas mesas e conquistou amantes por todo mundo, mas a popularidade custou caro, pois antes ele era um vinho raro e valioso e, durante algumas décadas do final do século XX, alguns rótulos perderam qualidade devido a uma produção desordenada, que visava apenas suprir a demanda do mercado. Foi somente neste século, quando alguns Amarone chegaram a ser vendidos nas prateleiras dos supermercados, que a região reagiu e resolveu modificar as regras de produção e controlá-las mais rigidamente.

O Amarone é um vinho DOC (Denominazione di Origine Controllata) desde 1968, e em 2009 foi promovido a DOCG (Denominazione di Origine Cotrollata e Garantita). A regulamentação da denominação determina o território onde as uvas podem ser cultivadas, as variedades de uva e o processo de elaboração do vinho, neste caso o grande diferencial do Amarone.

Geograficamente a zona de produção do Valpolicella é exatamente a mesma do Amarone. Trata-se de um conjunto de suaves colinas ao norte de Verona, entre as cidades de Grezzana e Sant’Ambrogio di Valpolicella. As uvas também são as mesmas: a uva predominante é a Corvina (40%-70%), em menor escala temos a Rondinella (20%-40%) e a Molinara (2%-25%), essas uvas são obrigatórias para produção do Amarone. Se podem adicionar como opcionais as uvas Rossignola, Trentino, Sangiovese, Barbera e Negrara utilizando-as num percentual máximo de 15%, vale lembrar que a seleção das uvas e do seu percentual, vai depender de cada produtor.

Na prática, os Valpolicellas e Amarones são feitos apenas com Corvina, Rondinella e Molinara. A primeira dá cor, caráter e maciez, a segunda contribui com a estrutura e a terceira, com a acidez e um delicado toque amargo.

Mesmo com estas afinidades, enquanto o Valpolicella é quase sempre um vinho leve e modesto, com 11% ou 12% de teor alcoólico, o Amarone é muito concentrado e com teor alcoólico nunca menor que 14%, podendo atingir 17%. O que gera esta diferença é o método de elaboração, muito distinto de outros vinhos.

Enquanto o Valpolicella é elaborado como qualquer vinho de mesa, para a produção do Amarone as uvas passam pelo processo de apassimento. Em janeiro ou fevereiro, a fermentação finalmente acontece, com longa maceração (contato do suco com as cascas da uva). O vinho resultante vai precisar, também, de um lento amadurecimento, que ocorre em barricas enormes de carvalho da Eslováquia e parte em barricas francesas, seguido do envelhecimento em garrafa. Um Amarone feito de acordo com essas regras não levará menos do que três anos para ficar pronto.

O demorado processo de vinificação confere uma intensidade e concentração que não costumam estar presentes em fermentações normais. As uvas adquirem um caráter resinoso e elevado teor alcoólico. Em seu estilo, o Amarone é encorpado, intenso tanto nos perfumes quanto nos sabores. E alcoólico. Tão alcoólico que, embora seco, dá a impressão de uma certa doçura.

Quando fica pronto, é um vinho único, especial e de estilo intenso, que pode agradar e desagradar na mesma medida e com a mesma força. Os críticos dizem que não é um vinho natural e, sim, um vinho de processo.

Tanto os Amarones como os Valpolicellas comuns podem trazer no rótulo o termo “Clássico”, o que significa que a garrafa foi produzida na zona central da região, nas localidades de Fumane, Marano di Valpolicella, Negrar, San Pietro in Cariano e Sant’Ambrogio di Valpolicella.

Não se pode esquecer de falar sobre o Ripasso que é o Valpolicella envelhecido em barricas de carvalho que sofre o contato com a borra do Amarone intacta, e a partir daí sofre uma segunda fermentação. O Ripasso é um vinho mais tânico, com coloração e aromas intensos e um volume de álcool maior. Seja qual for a preferência do método de elaboração, os emblemáticos Amarone, Recioto e Ripasso são grandes exemplares da enologia italiana.

Em geral os Amarones são de cor vermelho rubi intenso, eventualmente com tons alaranjados quando envelhecido (já que é um vinho que aguenta longa guarda). Os aromas tem uma nota picante acentuada, frutas seca como nozes, integradas com cerejas e frutas negras, além de toques de especiarias e chocolate. O paladar é seco, robusto e cheio, mas aveludado e equilibrado, com um retrogosto amargo clássico que o distingue de tantos outros vinhos.

Pode-se beber um Amarone jovem, com 4 a 5 anos de idade. Nada impede, entretanto, que uma garrafa repouse na adega até 20 anos. Alguns exemplares de boas safras e bons produtores vivem até mais. O teor alcoólico é no mínimo de 14°, podendo chegar aos 17° quando envelhecido. Aconselha-se servir entre 18°-20°C, e para ser melhor degustado, aconselha-se abrir a garrafa duas horas antes, e colocá-lo num decanter.

Quanto às harmonizações, vão bem com carne vermelha, carnes de caça e queijos fortes, como o parmigiano. Muitos consideram o belo vinho para curtir um momento de relax, já que um Amarone envelhecido é um excelente vinho da meditação.

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