“QUANDO O ERRO DEU CERTO E VIROU VINHO”
- Marcio Oliveira - Vinoticias
- 17 de mai.
- 7 min de leitura
A história do vinho está repleta de exemplos de como erros e imprevistos podem levar a descobertas extraordinárias. Ao longo dos anos, esses erros e imprevistos, que muitas vezes foram considerados falhas, levaram à criação de vinhos únicos e inesquecíveis.

Vários vinhos conhecidos e apreciados tiveram origem em erros, mostrando que, às vezes, os melhores resultados são alcançados por acidente. O Amarone, por exemplo, nasceu de um erro na secagem das uvas, levando a um vinho potente e complexo.
♦ A HISTÓRIA DA CRIAÇÃO DO AMARONE – Não é "amargo", é Amarone! Curiosamente, a origem deste vinho está ligada a um erro relacionado precisamente à vinificação de um passito veneziano, o Recioto della Valpolicella.
De fato, na Cantina Sociale della Valpolicella, alguém esqueceu alguns barris de Recioto. Isto aconteceu em 1936, e o gerente da adega, Adelino Lucchese, provou o líquido dos barris esquecidos, esperando provar um vinho 'amargo'. Mas seu belo paladar imediatamente reconheceu o prodígio e, diz-se, exclamou: "Isso não é amargo, é um Amarone", significando que esse erro estava longe de ser um infortúnio, muito pelo contrário.
O Recioto foi fermentado tanto que ficou seco, encorpado e estruturado. É claro que foram necessários alguns ajustes antes de encontrarmos a versão 'oficial' deste vinho, mas por volta da década de 1940, o passito 'amargo' começou a ser produzido regularmente.
O fato de Reciotto às vezes amargo ter sido obtido em Valpolicella era bem conhecido (embora muitas vezes fosse uma questão de combinações fortuitas). Um 'Amarone della Valpolicella' é mencionado em documentos relacionados a atos de compra e venda de vinhedos já no ano 1000 e depois nos anos 1500, mas é necessário esperar até as décadas de 1940 e 1950 para produzir os primeiros rótulos Amarone “oficialmente”.
Antes de tudo, Amarone não é produzido a partir de uma única variedade de uva, mas é uma mistura de uvas tintas da Valpolicella. A especificação afirma que é composto de uva Corvina entre 45% e 95%, uva Corvinone no máximo 50% e uva Rondinella entre 5% e 30%, além de outras variedades de uvas tintas autorizadas para a província de Verona, até um máximo de 25%. Sua peculiaridade, ignorada pela maioria, é que é um vinho passito – ou seja, as uvas são desidratadas por cerca de três ou quatro meses, posicionadas em prateleiras típicas de bambu chamadas de “arele” ou prateleiras de madeira, antes de serem prensadas. Claro que é um passito seco, não doce, ou melhor, "Amarone".
♦ O BAROLO ERA UM VINHO MEIO DOCE - O Barolo era historicamente um vinho meio doce, mas antes do século XIX, era comum que vinhos de regiões como a Langhe, onde o Barolo é produzido, fossem mais doces ou meio doces, devido ao clima. No entanto, a partir do século XIX, houve uma mudança na vinificação, que resultou no Barolo que conhecemos hoje, um vinho seco e encorpado.
Há registros históricos do cultivo de uvas Nebbiolo em Piemonte desde 1235. Porém, no início da produção desse vinho, eram utilizadas técnicas inadequadas, resultando em uma bebida inconstante, mas doce e leve. Isso fazia com que os nobres italianos consumissem com frequência os vinhos franceses, conhecidos por sua qualidade.

Atribui-se a última Marquesa de Barolo, Giulia Falletti, o desejo de que o vinho passasse a ser seco. Para satisfazer a pedido da Marquesa, o Conde de Cavour, Camillo Benso, uma das figuras proeminentes da unificação Italiana e que ocupou o cargo de Primeiro-Ministro do Reino da Sardenha até 1861, contratou um enólogo francês para a empreitada.
A Marquesa Falletti di Barolo, uma francesa naturalizada italiana, casou-se com Carlo Tancredi Faletti di Barolo, dono do palácio Barolo. Apesar de ser francesa, ela não se conformava com a preferência dos italianos pela bebida estrangeira (especialmente franceses). Então, trouxe um dos melhores enólogos da época, Louis Oudart, para auxiliar na produção do vinho italiano.
Não há registros precisos sobre o tema, mas possivelmente a doçura então observada se devia a uma casual combinação do amadurecimento precoce da Nebbiolo e fermentação incompleta do mosto. Talvez o processo fosse acelerado para que houvesse oferta de vinho antes do inverno, ou mesmo devido às características climáticas da região de Langhe que eram (e continuam sendo) mais frias com a chegada do inverno no Norte da Itália.
Seja como for, a Marquesa de Barolo teve um papel fundamental na divulgação do estilo seco do Barolo ao introduzi-lo nos aristocráticos círculos das cortes de Torino. Nascia assim um dos grandes vinhos da Itália.
Enólogos como Louis Oudart, (por exemplo), introduziram novas técnicas de vinificação que permitiram a produção de vinhos secos, mais complexos e de maior qualidade. Essa mudança na vinificação do vinho foi fundamental para o Barolo se tornar o vinho icônico que é hoje, conhecido pela sua estrutura, taninos e potencial de guarda
♦ O CHAMPAGNE NASCEU DE UM ERRO – Sim, o champagne nasceu de um "erro" durante a fermentação do vinho na região de Champagne, na França. O vinho, engarrafado antes da fermentação terminar, continuava a fermentar dentro da garrafa, produzindo dióxido de carbono e borbulhas. Embora inicialmente fosse um problema (as garrafas explodiam), um monge beneditino, Dom Pérignon, viu a oportunidade de transformar essa "efervescência indesejada" no que conhecemos hoje como champagne.
Durante sua elaboração, o vinho, por vezes, engarrafado antes do final da fermentação alcoólica, continuava a fermentar dentro da garrafa, produzindo gás carbônico e, consequentemente, borbulhas. A efervescência era um problema, pois as garrafas estouravam e as rolhas eram expulsas, resultando em perda de produto e prejuízo para os produtores.
Dom Pérignon, responsável pelo setor económico da Abadia de Hautvillers, reconheceu que a efervescência era um problema, mas também uma oportunidade. Ele entendeu que a fermentação dentro da garrafa era a responsável pelas borbulhas e decidiu aproveitar essa característica. Dom Pérignon dedicou-se a aperfeiçoar a técnica, garrafas mais resistentes surgiram no mercado, e vedações adequadas foram criadas para conter a pressão do gás, evitando que as garrafas explodissem.
Com o desenvolvimento de técnicas de produção, como a mistura de uvas (assemblage) e a seleção das melhores uvas para o terroir da região, Dom Pérignon contribuiu significativamente para a popularização e para a qualidade do champagne.
Nos champagnes, uma questão muito discutida é a respeito do tamanho das borbulhas. Uma descoberta foi feita por químicos franceses: quanto menores as bolhas, melhor a bebida. As borbulhas transportam as moléculas responsáveis pelo aroma e pelo sabor até a superfície da taça, quando são liberadas. O tamanho das pequenas bolsas de gás tem relação direta com a quantidade de moléculas, prolongando o prazer. É a concentração de dióxido de carbono e a presença de outros componentes químicos, como sais minerais e carboidratos, que determina o tamanho das bolhas e a sua quantidade. Agora, as vinícolas trabalham para descobrir como controlar esse processo.
Apesar de os estudos terem sido desenvolvidos para a melhoria da qualidade dos vinhos espumantes da França, seus resultados servem também para os fabricantes de similares como o prosecco e a cava. Na hora de comprar, só há um (pequeno) problema: é impossível ver o tamanho das bolhas com a garrafa fechada.
♦ A HISTÓRIA DOS VINHOS DE COLHEITA TARDIA – Conta a lenda que, em 1775, Johann Engert, gerente do mítico vinhedo de Schloss Johannisberg, mandou um mensageiro dizer ao abade de Fulda, cidade a sete dias de cavalgada, que as uvas estavam prontas para a colheita. Era preciso aguardar a ordem do religioso para iniciar a colheita. No entanto, o mensageiro se atrasou e as uvas apodreceram nas vinhas. Ainda assim, Engert decidiu colhê-las e vinificá-las. Meses mais tarde teria em mãos um vinho diferente de tudo que já havia provado. Era a invenção do Spätlese - cuja tradução é colheita tardia.
O “segredo” por trás do espetacular vinho criado por Engert, contudo, não estava apenas no fato de vindimar tardiamente, mas no fungo que atacou suas uvas, chamado Botrytis cinerea – que é tanto responsável pela “podridão cinzenta” como pela “podridão nobre”.
A lenda alemã, no entanto, não é a única a tratar da descoberta dos vinhos botrytizados. Diz-se que a família Rákóczi adquiriu o castelo de Tokaj, na Hungria, em meados do século XVIII. Na época, havia um iminente ataque turco ao país e o responsável pelo vinhedo decidiu atrasar a colheita com receio da guerra. Todavia, o conhecimento dos enólogos em relação aos efeitos da Botrytis no vinho parece ser anterior, pois há relatos do século XVI de vinhos feitos com uvas atacadas por fungos na Hungria.
O próprio nome do fungo não é muito alentador. Botrytis vem de cacho de uva, em grego, e cinerea vem de cinzas, em latim. Daí a podridão cinza. Uvas (ou quaisquer outras frutas) atacadas por esse fungo tomam uma coloração cinzenta e esse ataque, na maioria das vezes, leva à degradação do fruto sem que ele possa ser aproveitado para nada. Ou seja, a aparição de Botrytis cinerea em um vinhedo, na maioria das vezes, mais preocupa do que entusiasma os enólogos. Seu aparecimento é tratado como uma doença.
Como se pode supor, a umidade está por trás do aparecimento desse fungo. Regiões com chuvas constantes ou próximas a fontes de água, por exemplo, tende a ter uma maior incidência de Botrytis, que não ataca somente os frutos, mas também flores e outras estruturas da vinha. E somente em situações muito específicas este fungo é bem aceito.
Para que deixe de ser “podridão cinza” e se torne a tão aguardada “podridão nobre”, é necessária ajuda climática. Para que a Botrytis surja, é preciso umidade. No entanto, para que a vinha consiga “combater esse mal”, essa umidade não pode ser intensa e constante. Dessa forma, para que haja um equilíbrio de forças, são necessárias manhãs frias e úmidas e tarde quentes e secas.
Assim, a Botrytis instala-se nos frutos, mas não a ponto de estragá-los, pois a videira é capaz de combater seu alastramento. No final, a ação do fungo na uva cria algo que resulta em vinhos míticos. Deve-se lembrar, contudo, que nem todas as uvas lidam bem com esse fungo. Riesling, Furmint, Gewürztraminer, Sémillon, Pinot Gris, Chenin Blanc são algumas das que oferecem bons resultados.
Então, que tal provar um destes vinhos e perceber que muitas vezes a tentativa e erro é a “mãe” da oportunidade. A humanidade ganhou experiência durante milênios e o mundo o vinho não é diferente. Foi “errando” que os homens criaram coisas maravilhosas. Aliás, o próprio vinho, segundo uma de suas lendas, seria fruto de um “erro” – quando nos primórdios da história, alguém esqueceu as uvas e elas fermentaram.
Saúde!!! Aproveite para comentar se gostou ou não do artigo!!! (Este artigo está baseado em material disponível na internet, e minhas considerações em relação ao tema).
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